Encontrando-se com outrem
Um exercício de escrita criativa, algumas considerações e inspirações
Foto por Andrey Grushnikov em Pexels.com
O exercício é bem simples de explicar: escreva um texto em que, numa viagem no tempo, você se encontre com seu adolescente, ou ele com você. Não importa se você vai ou se é ele que vem, mas o encontro tem que acontecer. Como seria?
Simples, né? Pelo menos de explicar. Agora, de fazer eu já não sei. Isso é com você. Pode ser desafiador, mas é um exercício interessante; um momento de se olhar e também de desenvolver uma narrativa inusitada.
A ideia de propor esse exercício veio depois da leitura do poema “Adolescente”, da poeta polonesa Wislawa Szymborska. Nele, o eu lírico, numa idade madura, começa com uma hipótese:
“Eu — adolescente?
Se de repente ela me aparecesse aqui, agora,
deveria saudá-la como a uma pessoa próxima,
mesmo que me pareça estranha e distante?“
A hipótese vai se transformando numa espécie de encontro físico:
“Tanto nos diferenciamos
de coisas tão diversas falamos, pensamos.
Ela sabe pouco –
mas com absoluta convicção.
Eu sei muito mais —
mas sem certezas.”
Foto por Surene Palvie em Pexels.com
E ao final, depois que a pessoa madura e a adolescente se despedem, uma peça do vestuário reforça mais ainda essa mescla de memória e materialidade:
“Só quando some
e na pressa esquece o cachecol.
Um cachecol de pura lã,
com listras coloridas,
tricotado à mão para ela
pela nossa mãe.”
Esse poema, “Adolescente”, está no livro “Um amor feliz”, de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien. Recomendo a leitura do texto integral para que você faça a sua interpretação. A poesia é subjetiva, e permite várias leituras; sempre importante lembrar disso.
Esse encontro no poema de Wislawa me fez pensar em algo, bem complexo, que li a respeito do tempo no livro “Sete breves lições de física”, de Carlo Rovelli.
Um dos capítulos do livro tem o seguinte título: “A probabilidade, o tempo e o calor dos buracos negros”. Bem assustador para esse formado em Letras aqui. O engraçado de ler um livro de física foi que ao invés de encontrar respostas para todas as minhas dúvidas a respeito de universo, o que me aconteceu foi que aquela frase do Sócrates gritou bem alto, mais alto ainda: “Só sei que nada sei.” Aliás, descobri que tenho mais dúvidas do que imaginava.
Nesse capítulo, questiona-se o escoar do tempo, a ideia de passado, presente e futuro; isso tudo poderia ser uma ilusão, e não algo objetivo.
Rovelli mostra que o tempo é muito mais misterioso do que imaginamos, pelo menos do que eu imaginava até então. Depois de relacionar o tempo com termodinâmica e estatística, arremata:
“Para uma hipotética vista agudíssima que enxergasse tudo, não haveria tempo que “flui” e o universo seria um bloco de passado, presente e futuro. Mas nós, seres conscientes, habitamos o tempo porque vemos uma imagem imprecisa do mundo. Se posso roubar as palavras do meu editor: ‘O imanifesto é muito mais vasto que o manifesto’. Desse desfoque do mundo, nasce nossa percepção do fluir do tempo.“
Claro? Não. Resta muitíssimo a compreender.”
Mas aí é tarde demais para mim, senhor Rovelli, pois já estou caminhando ao som de “Singin’ in the Rain” num corredor da pequeníssima Via Láctea, vendo esse seu bloco aí: meu berço, minha mantinha, a escola estadual de primeiro grau, o tombo da bike que doeu pra caramba, “Ghost – do outro lado da vida” no videocassete, a primeira leitura de Cem anos de solidão, uns beijos trocados, a minha formatura, o trabalho novo, outro trabalho novo, aquele dia feliz, olha eu ali dançando, que cheiro gostoso de bolo saindo do forno, o som agradável daquela chuva de ontem que está aqui nesse bloco agora; pois é, ler sobre física mexe com a imaginação. Expande!
Se você chegou até aqui, não se esqueça de que lá em cima tem um exercício de escrita para você fazer.
Finalizo com uma cena do filme “De volta para o futuro II.”, em que o Biff Tannen maduro viaja no tempo e se encontra com o Biff Tannen jovem na tentativa de mudar o rumo da vida dele. Ou seria da vida deles?
Cena do filme “De volta para o futuro II”, direção de Robert Zemeckis
Boa escrita!
Boa viagem!
Eduardo Barbosa
Instigante. Intrigante. Desafiador. Excitante. São algumas palavras que me vêm da leitura acima e da proposta de escrita. Bora arregaçar as mangas, respirar fundo e encarar nosso eu jovem!!! 😊😍
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Encarar é a palavra adequadíssima para esse exercício. Ótimo trabalho!!🙂🌹
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“Para uma hipotética vista agudíssima que enxergasse tudo, não haveria tempo que “flui”…” me faz lembrar a reflexão que a Wilawa traz no seu poema Microcosmo que discutimos na Tertúlia passada. A relatividade das dimensões dependendo da potência dos instrumentos que utilizamos. Assim também me parece, a partir da explicação física acima, o tempo, não? A gente só ainda não inventou esse aparelho que aumentasse tanto a nossa visão que nos permitisse enxergar esse bloco único de passado-presente-futuro…
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Exatamente. Algumas coisas que estavam além, conseguimos fazer: ver de forma ampliada, voar, estar em dois lugares ao mesmo tempo (olha o Zoom hehe)…
Mas o tempo, esse é difícil.
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