Carta para a Ciência
Foto por John-Mark Smith em Pexels.com
Campinas, 09 de julho de 2021
Ciência,
Acho que essa carta deve começar com toda a sinceridade do mundo: eu sempre te achei uma chata. Sempre não, meus primeiros contatos com você até que foram agradáveis, época em que eu pintava os cinco sentidos na cartilha da 2ª série A e cuidava de uma plantação de alpiste que ficava na janela da cozinha da minha vó; até aí tudo bem, mas depois nossa relação ficou difícil e em alguns momentos, insuportável.
À medida que eu avançava nas séries, você ficava mais complicada e abstrata, até que chegou um dia em que se dividiu em Química , Física e Biologia, e não sei qual dessas três era a era pior. Eu queria ficar ali, de boa, lendo meus primeiros livros sérios, treinando umas redações, ou até mesmo conhecendo um pouco mais da História do Brasil, mas na apostila do colegial gritavam a mitocôndria, o complexo de golgi, os lisossomos e os ribossomos, os citoplasmas, e só consigo me lembrar disso porque estudei muito praquela prova, tirando um inédito 8,5 inesquecível e único em Biologia na minha vida.
Seu espaço, oh! gélida Ciência, era frio: aquele laboratório branco e assustador do liceu, com tantos aparelhos intimidadores. Atrapalhado que era, sempre tive medo de esbarrar num microscópio e quebrar. Devia custar uma fortuna. É preciso ser justo e dizer que do microscópio eu gostava; ver o invisível me dava uma sensação de super-homem. Mas só isso; graça nenhuma naquelas pipetas; nunca me interessaram cientistas e suas moléculas e eurecas; filtração, destilação, decantação, flotação, chateação…e pra quê? Pra quê, hein? Pra me ferrar no vestibular? Minha nota teria sido muito maior sem você, e sem a Matemática, que é da sua turma.
Eu, por mim, ficaria sempre no anfiteatro da escola exercendo toda minha canastrice como Romeu, Édipo, Polônio…
E por falar em Polônio, você enfiou o Polônio naquela triste e quadriculada tabela periódica. O que você fez com os elementos? Ouro e Prata nas mãos de um ourives virariam anéis, colares e braceletes; na sua mão, Ciência, viraram monossilábicos Au e Ag e foram atomicamente numerados. E o pobre do cobre que virou Cu !? Cu! Que sacanagem.
Tem também aquelas leis e teorias e sei lá mais o que, né? Newton, com a maçã, que ao invés de fazer torta fez lei, as leis da termodinâmica, a teoria de Darwin, modelo atômico de Thompson… desse último eu não posso reclamar, pois ele rendeu um pudim de ameixa delicioso feito pela minha mãe.
Foto por Zaksheuskaya em Pexels.com
Poderia encerrar as reclamações por aqui, mas quando eu começo eu não paro: tem as cores, e é preciso falar delas, Ciência abençoada, das cores. Cor é coisa do cinema, da pintura, da moda, mas você conseguiu transformá-las em primárias, terciárias, luz, pigmento, circulo cromático, disco de Newton…eu nunca pensei em nada disso diante de um amarelo de Van Gogh, ou da fotografia de Barry Lyndon. Por que pensaria?
Foi por essas e outras que eu fui me afastando de você. E quando saí do colegial até esqueci da sua existência. Sabia que estava por aí e por aqui, mas não me despertava interesse nenhum. Fui ler e saber sobre outros assuntos, bem mais interessantes pra mim.
Mas as coisas mudaram, Ciência querida, e foi em 2020, no ano do coronavírus. Você reapareceu com força total, ficou pop, festejada e celebrada: Viva a Ciência! Graças à Ciência! Bendita Ciência!
Passei a me interessar por você, a acompanhá-la nos noticiários, revistas especializadas, perfis sobre sua pessoa nas redes socais. Primeiro só lia e via aquilo que dizia respeito ao seu papel no combate à pandemia, mas depois o interesse ficou mais geral. Comprei até um livro de Física. De Fí-si-ca!
Você passou a ser um personagem por quem eu vibrava e desejava um final feliz, para todos nós. Emocionei-me com algumas de suas conquistas como se estivesse diante de um espetáculo de dança, de uma peça arrebatadora. Alguns de seus êxitos me vinham como uma poesia, um soneto feliz, ou uma prosa com epifania.
Eu a li como uma heroína lutando contra um vírus feroz que tantas vidas levou, mas não só contra ele. Como adversários você também teve o negacionismo, as fake news, a politicagem. Você trabalha com fatos e verdade, e para alguns essas duas coisas são um perigo, pois atrapalham seus planos de poder.
Eu, se escrevo essa carta nesse dia é porque cheguei até aqui, aos 40 anos de idade. Hoje me vacinei, AstraZeneca, segunda dose em outubro, e espero chegar até lá. O braço está doendo um pouco, mas isso não é nada e não faria sentido nenhum reclamar. Nunca uma agulhada foi tão gostosa. Aconteceu hoje à tarde: a Terra, que não é plana como muito bem me ensinaram, girava em torno do Sol como sempre, e o Sol estava tão agradável e me acariciava que nem parecia estar a mais ou menos uns 150 milhões de quilômetros de mim. O céu estava azul, essa cor primária esplendorosamente bela. A vacinação aconteceu num posto de saúde localizado na Rua dos Salgueiros, salgueiro, essa planta do gênero Sálix, da família das salicáceas. Fosse um nome de general, capitão ou coronel, e eu não me lembraria para sempre do nome da rua em que aconteceu algo tão importante na minha vida. Achei cientificamente poético.
Ciência sua linda, embora eu tenha iniciado com algumas reclamações, essa é uma carta de agradecimento.
Muito obrigado!
De seu best friend forever
E…
Eduardo Barbosa
Republicou isso em REBLOGADOR.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Devaneios, muito obrigado pelo reblog. 🙂
CurtirCurtir
Achei fantástico esse texto muito bem escrito , consegue despertar diversas emoções diferentes em um mesmo texto .
Consegue despertar o senso crítico de uma forma muito bem humorada que até me fez rir sozinho em frente a tela do computador rsrs …os detalhes de cada coisa me faz lembrar Machado de Assis !!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Silvano, muito obrigado pela visita, pela leitura e pelos comentários. Bom saber que o texto provocou risos e reflexão. Saber que algo da minha escrita fez lembrar o Machadão me deixou bem feliz, hein! 🙂 🙂
CurtirCurtir
Edu!
Me desculpo porque, em meio aos desafios e percalços dos últimos tempos, apenas hoje li sua Carta à Ciência. Parabéns! Sensibilidade, ineditismo, sagacidade, humor e a total correição que o caracterizam. Uma alegria a leitura! Tomo a liberdade de juntar à ode essa minha cirurgia de fios e pinos que, igualmente viabilizados pela ciência, tornarão a colocar meu joelho ajustado e farão os passos novamente possíveis… com muito empenho e alguma sorte, quem sabe ainda mais largos?
Obrigada por partilhar!
Siléa
CurtirCurtir
Siléa, não precisa se desculpar. Quanta alegria ao ler essas suas palavras! Fique à vontade e venha para a ode. Esse joelho logo estará em ordem, os passos serão mais largos e, POR FAVOR, vamos comemorar essa conquista passeando pelo calçadão, com uma parada para um café, claro. 🙂
CurtirCurtido por 1 pessoa