Em busca de personagens
Considerações, notas e exercício

Pois é, temos aí uma boa pergunta, e para ela muitas respostas que variam de um autor para outro.
Vamos pensar em várias possibilidades, em vários lugares de onde podemos tirar uns personagens.
- Você ganha um do nada. Isso mesmo. Está tomando um banho, e o personagem surge, não no banho, mas na sua cabeça. Isso pode acontecer, e dê um jeito de ficar com ele: não importa se você vai ficar aí trabalhando bem a ideia ao som da água do chuveiro e cheiro de sabonete, ou se vai vai terminar logo esse banho e se enxugar rapidinho em busca de algum bloco de anotações; o importante é anotar em algum lugar, que você encontre depois, esse personagem: ele pode aparecer numa futura história.
- Num parque, tarde de primavera, os ipês coloridos, pássaros cantam , seu corpo sobre a relva, e um sussurro… olha para um lado, olha para outro, mas ninguém perto de você, e o sussurro continua ao pé do ouvido, um personagem é ditado: são as musas. Aproveite! Ouça tudo. Parece que faz tempo que isso não acontece. Parabéns pelo privilégio!
- Você está lavando o rosto e quando olha: seu personagem está ali, no espelho.
- O (pré-) personagem pode estar na multidão no centro da cidade, ou no escritório em que você trabalha, ou naquela reunião atrapalhada do Zoom, dormindo com você, te atendendo diariamente na padaria, vendendo bala no trânsito, é uma celebridade famosa, você o viu no carro ao lado, foi consertar a máquina de lavar da sua casa, está sentado solitário na mesa do restaurante em que você está jantando; pode estar por aí, esperando para se transformar em palavras e agir na sua história.

Algumas notas sobre um livro do Murakami
No livro “Romancista como vocação”, Haruki Murakami, escritor japonês e autor de Kafka à beira-mar“, diz que seus personagens são criados naturalmente, durante o desenrolar do enredo; e que poucas vezes criou um personagem, desde o início da narrativa, baseado em alguém. Quando o fez, tratou de modificar bastante os traços, para evitar problemas com a inspiração de carne e osso. Bem certo ele, imagine se o ser que inspira se sinta invadido e resolva arrumar confusão com o escritor.
Murakami preza pela espontaneidade e poucas vezes decide de antemão a personalidade do personagem; a criação é feita de uma forma automática.
“Acho que basicamente extraio e combino de forma quase inconsciente os fragmentos de informações guardados nas gavetas do meu cérebro.” (Haruki Murakami)
O escritor faz uma interessante imagem de como funciona o seu processo: é como se minirrobôs trabalhando em seu inconsciente criassem os personagens, e ele, o escritor, apenas descrevesse as características ditadas. Esse é um momento mais inconsciente e intuitivo; a parte mais consciente e lógica aparece depois, na reescrita. Dessa forma, os personagens ficam mais verossímeis e com mais vida.
Embora no livro Murakami fale mais sobre o processo na escrita de um romance, nada impede que pessoas que escrevem narrativas curtas possam usufruir bastante da leitura.
Murakami aconselha prestar atenção na aparência das pessoas: no modo de falar, de agir; e não apenas das pessoas agradáveis, mas das desagradáveis também. Isso pode gerar muitas ideias para a composição de personagens.
Sobre a dica acima, isso não significa que você vai escrever exatamente sobre determinada pessoa, mas algo dela pode servir de inspiração e te ajudar na construção de um personagem. Você pode juntar características de uma pessoa, com características de outra e de outra…
Sendo uma pessoa observadora, prestando atenção no outro, as informações podem ficar guardadinhas aí na sua cabeça e aparecer num momento em que você está escrevendo uma história. É um material guardado na gaveta. Ah, e não deixe também de anotar quando achar necessário; você sabe que não dá para contar totalmente com a nossa memória.
Entortamento
Algumas das orientações de Murakami, observar pessoas e modificar seus traços, me lembraram de um conceito bem interessante que vi no livro “Como o cérebro cria”, de David Eagleman e Anthony Brandt: Entortamento.
“Entortamento?”
Sim, entortamento.
Entortar é reproduzir algo de maneiras diferentes; remodelar objetos de várias formas; deixar muito grande, deixar muito pequeno; pense nas miniaturas, nas maquetes, que diminuem o tamanho real das coisas, nas caricaturas, que exageram os traços das pessoas — esses são exemplos de entortamento. Obras artísticas também podem ser entortadas. O musical West Side Story é um entortamento (versão/adaptação) da peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare.
Não tem como não lembrar do filme O rei leão, entortamento da peça Hamlet, do mesmo Shakesperare.
Exercício : Entortando uma fotografia
Tire um tempinho para olhar fotos. Vai ali nos seus álbuns de fotografias ou nas suas redes sociais.
Foto por Suzy Hazelwood em Pexels.com
Você vai escolher uma foto. Não se esqueça. Você está criando um personagem, então não me escolha foto de paisagem sem ninguém.
Foto escolhida, caso ela tenha várias pessoas, concentre-se em apenas uma. É ela que você vai entortar, transformar numa personagem. Olhe para essa foto com bastante atenção: as roupas da pessoa, sua expressão o lugar em que ela se encontra.
Agora entorte essa foto, não literalmente, não vai destruir seu álbum, transforme a imagem dessa pessoa num personagem e escreva uma pequena história em que ele seja o protagonista (pode ser uma história grande também).
Importante: o objetivo do exercício é fazer com que uma imagem sirva de inspiração para a criação de um personagem. Então não escreva uma história que narre exatamente o que aconteceu na foto e nem faça uma descrição exata da pessoa fotografada (como você está olhando seu álbum ou suas redes sociais, você pode saber muito a respeito do contexto da foto e do fotografado).
Pronto.
É isso. Bom trabalho.
Boa escrita!
Eduardo Barbosa
Uma verdadeira aula em forma de texto! Sempre compartilhando tão bem o seu saber.
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