Os sentidos na escrita, os cinco

Algumas considerações, exemplos literários e uns exercícios de escrita criativa

Foto por Pixabay em Pexels.com

Creio no Mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

(Versos do poema II de “O guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro)

Alberto Caeiro é radical. Para ele o que importa é sentir, e pensar não está com nada. Basta captar a realidade por meio apenas dos sentidos e pronto. Deve-se abrir mão dos pensamentos, da reflexão, da filosofia, da metafísica.

Sinta o vento no seu rosto, deguste com prazer esse seu chocolate com amêndoas, ouça o som da chuva, cheire as rosas, e principalmente, veja, sim, “principalmente, veja”, porque a visão é o sentido mais importante para Caeiro. Veja as pessoas queridas, as não queridas veja de longe, olhe para os pássaros, as árvores, flores, os prédios aí da sua janela, para os móveis da sua casa, o Sol – não deixe de ver, de sentir o Sol, pois “a luz do Sol vale mais que os pensamentos/De todos os filósofos e de todos os poetas.” (versos do poema V de “O guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro).

Bonito, né?

Mas como viver sem pensar? E para quem escreve, como usar a palavra sem o pensamento?

Para escrever é necessário dominar uma língua, articular as ideias, organizar as frases, pontuar etc. Transformar a realidade e as nossas sensações em palavras exige o pensar.

Esse é o grande paradoxo de Caeiro, o poeta que despreza o pensamento. No entanto, sua atitude sensacionista ao extremo nos coloca para pensar (não falei que era um paradoxo?) na importância dos sentidos para a apreensão da realidade; é através deles que captamos o ambiente que nos cerca; o mundo chega a nós pelos sentidos e muitas vezes nos esquecemos disso. Valorizá-los pode nos trazer muitos benefícios, como um contato maior com a natureza, mais serenidade, uma forma mais simples de ver o mundo.

É um belo ensinamento o de Caeiro. Não é à toa que esse heterônimo de Fernando Pessoa é o mestre dos outros heterônimos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, e mestre também do próprio Pessoa.

Que tal reparar mais nos seus sentidos e levar isso para a sua escrita?

Literatura e os Sentidos

Os sentidos podem dar mais vivacidade aos nossos textos.

Pensemos na nossa experiência com a leitura e em como uma história pode mexer com as nossas sensações:

  1. Uma história pode nos deixar com água na boca diante da descrição de um delicioso banquete. Eu já cheguei até a fazer bolo por causa de livro (o bolo Chabela de “Como água para chocolate”, de Laura Esquivel ).

2. Num dia de inverno, uma narrativa que acontece numa bela tarde na praia nos faz recordar a gostosa sensação do sol tocando nossa pele. E comigo uma vez aconteceu o contrário, quando numa ensolarada Floripa eu li A Montanha Mágica do Thomas Mann. Fiquei confuso, foi uma espécie de choque térmico.

3. Os pássaros cantam numa floresta encantada de um livro, e a gente chega até a ouvir os seus gorjeios.

Esses são alguns dos exemplos de como uma escrita que valoriza os sentidos mexe com os nossos.

Estava lendo esse dias ” O olho mais azul”, da Toni Morrison (tradução de Manoel Paulo Ferreira), e me deparei com essa belezura:

“A pouca altura do banco feito para mim, a segurança e o calor da cozinha da vovó, o aroma dos lilases, o som da música, e como seria bom envolver todos os meus sentidos, o gosto de um pêssego, talvez, depois.”

No trecho acima, temos todos os cinco sentidos cabendo em uma só frase.

Em Ulisses, de James Joyce, ficamos sabendo a respeito de aspectos da alimentação de Leopoldo Bloom da seguinte maneira (tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro):

O senhor Leopold Bloom comia com prazer os órgãos internos de aves e de outros animais. Ele gostava de uma sopa grossa de miúdos de aves, moela com nozes, um coração recheado assado, fatias de fígado fritas à milanesa, ovas de bacalhau tostadas. Mais do que tudo, ele gostava de rins de carneiro grelhados que davam ao seu paladar um sabor refinado de urina ligeiramente perfumada.

Rins estavam em sua cabeça enquanto ele se movia mansamente pela cozinha , arrumando as coisas dela na bandeja corcovada. Havia na cozinha uma luz e um ar gélidos mas lá fora se estendia em toda parte uma suave manhã de verão. Fazia com que ele se sentisse um tanto faminto.

Você pode não gostar das iguarias apreciadas pelo Sr. Bloom, mas preste atenção nos sentidos nessa passagem (e não é só o paladar que está ali).

O poema Rio na sombra, do livro Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, começa assim:

“Som

frio.

Rio

sombrio.

Olha ali os dois primeiros versos: som (audição) / frio (tato). Para uma palavra que se refere à audição (som), a poeta dá um adjetivo referente ao tato (frio). Essa mescla é um recurso estilístico que recebe o nome de Sinestesia.

Escrevendo com sentidos

Exercícios

1) Explore a sua casa com os sentidos: tire agora, se puder, uns minutinhos para você fazer isso: toque nas coisas, ouça os barulhos, sinta os cheiros, coma algo , olhe com atenção para o que você quiser. Repare em como você percebe a realidade, como seu tato, olfato, paladar, visão e audição captam o externo.

Extensão desse exercício: você pode prestar mais atenção nos seus sentidos de uma forma mais constante, no seu dia a dia. Para isso, “divida seus sentidos”. Em um determinado momento preste atenção nos cheiros; em outro, nos barulhos de sua casa; na hora da refeição, coma bem devagar os alimentos e sinta de verdade o sabor; faça um carinho no seu animal de estimação. Esses são alguns exemplos. Depois disso, escreva algo a respeito dessa (s) experiência (s). Obs.: essa divisão é uma sugestão, pode misturar os sentidos se quiser.

2) Escrevendo com os sentidos: escreva um pequeno texto (pode ser grande também) em que os cinco sentidos apareçam. Algumas sugestões:

a. Narre uma breve história/situação.

b. Crie um personagem.

c. Descreva um espaço.

d. Descreva um objeto.

e. Descreva um animal.

(se quiser, faça todas)

3.) Leitura atenta: no próximo texto que você ler, preste atenção em como os sentidos aparecem. A leitura atenta dos textos dos outros pode colaborar com a escrita do seu texto.

Eduardo Barbosa

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